Semana passada, voltando
para casa de ônibus intermunicipal, escutei a conversa de um casal que estava no
banco da frente. Sempre defendi o uso de fones de ouvido e, diga-se de
passagem, uma das invenções mais revolucionárias do nosso século; com eles
minha vida tem trilha sonora e eu sou o DJ J. Não sou obrigado a
escutar os barulhos e conversas loucas que nos cercam. Mas neste dia, os fones ficam
em casa. Ai acabo escutando os assuntos cotidianos dos outros. Normalmente os assuntos que acabo escutando são: futebol, novela,
página policial, sobre previsão do tempo. Mas neste dia, o casal falava insistentemente
do vizinho Bernardo. E eu aqui então vou analisar a fofoca... fofocada hahaha
Quando
as pessoas costumam julgar a vida ou a trajetória de vida de alguém, me parece na
maioria das vezes, que as pessoas entendem o indivíduo como contendo sempre
todos os elementos para seu sucesso ou fracasso, bastará que ele tenha maestria
para escolher. TUDO, mas tudo mesmo é culpa do próprio sujeito. Bernardo, o
vizinho fatídico do casal, não é diferente: - “Ele escolheu o caminho errado,
foi preso e agora é camelô”; “Não quis estudar, né?” “Escolheu vida fácil”. “Se
seu filho não fizer diferente, vai pro mesmo caminho”.
Neste conjunto
de julgamentos da vida do vizinho, a mulher reflete sobre a sua própria
trajetória: -“Se eu puder, vou dar um futuro melhor pro meu filho”, “Eu também não
acabei a escola, mas ele vai acabar”. E o rapaz ainda completa: “Se o cara
quiser mesmo, ele consegue”.
Não
sei muito como esse pensamento começou, mas desconfio que os filmes americanos
da Tela Quente-fria e da nossa
maravilhosa Sessão da Tarde-tortura, que
nos ensinam sempre a filosofia do “Just do It”, ou em outras palavras, nos
filmes é comum identificar que mesmo que tudo dê errado, seja para a vida do
protagonista, seus amigos e familiares (aí se incluem os cachorros que teimam
em aparecer nos seus filmes inéditos da tarde), mas mesmo que esteja tudo dando
errado, basta alguém fazer um discurso emocionante no final do filme, um
indivíduo qualquer, ao estilo clássico de Adam Sandler que sabe como colocar as
palavras de forma emocionante, que tudo vai dar certo e no final, falando com
vontade e se fizer direitinho um belo discurso de mérito, tudo dará certo. Ou
seja, surge o discurso do nosso herói, o Super
Indivíduo.
O super Indivíduo pode
conquistar tudo, basta querer, ter sorte e sonhar com muita força de vontade.
Livros de auto-ajuda também possuem uma contribuição fantástica na crença de
que todos podem chegar lá, basta querer. Mas afinal, não é assim mesmo que se
deve pensar? Não basta querer para chegar lá? Quem se esforça mesmo, não
consegue seus objetivos? Não é correto pensar que não importa do que eu seja
feito, eu posso brilhar igual a qualquer outro?
Respondendo
de forma bem sincera: - Não. Não basta querer e se esforçar muito. GRANDE parte
dos desafios de “vencer” na vida (e não basta ter um bom salário, conforto, carro e imóvel
próprio, estamos falando em ficar rico e famoso mesmo) se é que existe alguma vitória nisso, depende muito mais de fatores
externos, ou seja, sociais, políticos e culturais. E digo mais, se você nascer
branco, rico, do sexo masculino e tiver nascido e vivido em uma grande cidade, cada
uma dessas características somadas eleva suas chances, elas são estatisticamente
de relevância maior que o esforço individual. Sabemos que sem esforço dificilmente
existe conquistas, mas Só ele, não garante nada. Para quem nasce negro, pobre,
do sexo feminino e nasceu e viveu longe dos centros urbanos, não possui
elementos condizentes com o padrão de beleza estabelecido, simplesmente querer
não é poder. E este último grupo de características compõe uma grande parcela
da população no Brasil.
SIM,
estatisticamente podemos analisar as trajetórias, definir padrões e afirmar com
todas as letras: NÃO NASCEMOS IGUAIS, NÃO TEMOS AS MESMAS OPORTUNIDADES. Falar
em Super Indivíduos é tão ilusório
para a maioria das pessoas, que ao longo da vida TODOS precisam mudar seu mito
de origem, rever suas metas e justificar suas escolhas. Seu discurso que antes
era: Quero ser médico para salvar vidas, se transforma em: - Eu queria ser
médico, mas cursei técnico de enfermagem e descobri minha vocação, sou muito mais
feliz sendo técnico e colocando a mão na massa, fico mais perto dos pacientes
que o próprio médico. (Entre outros discursos de formatura que são resultados
de reconstruções artificiais para reforçar o mérito e a vocação).
Não
quero desmotivar os motivados, mas acho que mais importante que ter motivação é
ser realista, significa ter os pés no chão, saber onde se pisa para traçar seus
sonhos. Principalmente se estamos falando dos outros e com os outros. Um bom
livro para explicar com mais profundidade essa questão, chama-se: A Ralé Brasileira, do sociólogo Jessé de
Souza. Livro de leitura fácil. Indico muito esta leitura e fico aberto para a
discussão.
Não esqueça que os mitos do Silvio Santos e Samuel Klein e tantas outras exceções, não correspondem a nenhuma regra, por isso são chamados de exceção. O mito do pobre Office boy que virou o dono rico da empresa é tão irrelevante nas estatísticas que devem alcançar o impressionante coeficiente de 0,05% das trajetórias de sucesso no Brasil (Dado sem fonte, mas que é difícil de ser batido).
A verdadeira mudança na realidade se faz quando reconhecemos as injustiças sociais na trajetória interrompida de indivíduos como o vizinho Bernardo. Ele poderia ser um ótimo matemático, cantor, médico, professor, mas que não teve as mesmas chances que eu. Reconhecer as injustiças sociais é um passo importante para não me sentir melhor que ninguém e me coloca em uma escolha de ter ou não compromisso social: Ou me coloco frente à sociedade e luto coletivamente pela igualdade de oportunidades ou escolho e compartilho um discurso que cria Super Indivíduos no mundo da minha fantasia social e justifica o meu comodismo e preconceito.
A crença nos Super Indivíduos, em parte, sustenta outra crença, já muito discutida, chamada Meritocracia, segue uma ótima entrevista que discute historicamente e sociologicamente o Mérito pela já Clássica Antropóloga brasileira Lívia Barbosa. Vale muito assistir.